ENTREVISTA: Richard Gordon fala sobre cinema brasileiro
em 07/07/2020

Richard Gordon é Professor de Estudos Brasileiros, e Literatura e Cultura Hispano-Americana no Departamento de Línguas Românicas, da Universidade da Geórgia – UGA – em Athens, E.U.A.. Foi Diretor do Departamento de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos, de 2012 a 2019. Tem vários artigos em revistas especializadas e livros publicados sobre uma de suas grandes paixões: o Cinema Brasileiro.

Leia a seguir a entrevista com o Professor norte-americano, realizada pela Professora Associada em Letras, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Maria Cristina Cardoso Ribas, para o blog Conexões Itaú Cultural:

Quando começou a estudar o Cinema Brasileiro e se tornou um especialista em filmes que trazem à cena a construção do nacionalismo a partir da releitura da Antropofagia?

A minha fascinação pelo cinema brasileiro começou no meu primeiro ano de Doutorado na Brown University, no ano de 1995, no Departamento de Estudos Hispânicos. Estava participando de um seminário sobre historiografia colonial latino-americana com a Dra. Stephanie Merrim. E, como eu acabara de passar meio ano no Brasil e tinha interesse em explorar conexões entre o mundo hispano e o mundo lusófono, decidi enfocar minha pesquisa numa comparação entre duas adaptações construídas a partir da historiografia colonial: o filme Cabeza de Vaca, do México, que saiu no ano 1991, e Como era gostoso o meu francês, o conhecido filme brasileiro de Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1971. Penso que a temática do filme mexicano calcada no canibalismo e a retomada ao tema de antropofagia cultural do Nelson me inspiraram a pensar na questão antropofágica como uma metáfora mais ampla em nível temático e também composicional (o modo de operar): ou seja, uma estratégia para se aproximar das adaptações cinematográficas num contexto pós-colonial. O trabalho final desse seminário acabou sendo a semente da minha tese e, posteriormente, do meu primeiro livro. Durante a pesquisa encontrei mais de cem filmes brasileiros e uma quantidade semelhante no México sobre a época colonial. Os cineastas destes países, mais de que os de quaisquer outras nações da América Latina e do Caribe, com a exceção parcial de Cuba, mostraram desde o começo do século XX, uma fascinação, ou uma preocupação, sobre a época colonial. Ao estudar os filmes notei certas tendências — por um lado, temáticas, como o encontro inicial dos europeus com os povos indígenas (enfoque do meu primeiro livro), e o escravidão (enfoque do segundo); e, por outro lado, de aproximação à reinterpretação do passado, às vezes com um texto base que adaptam, e às vezes revisando a pluralidade de fontes que compõem a compreensão atual de figuras ou eventos históricos. Muitos destes filmes representam o modo pelo qual revisam o passado, numa aproximação que chamo de adaptação antropofágica, em que os cineastas tomam controle sobre a matéria-prima, sobre o legado da época colonial, fazendo-o relevante para o presente do filme, e manipulando as histórias estrategicamente, muitas vezes com fins políticos. Isto se contrasta, por exemplo, com adaptações de romances ou outros filmes históricos que provocam prazer no espectador por favorecerem a imersão romântica e fantasiosa em outra época, ou por reconhecerem a fidelidade a um apreciado romance. Os filmes que costumo estudar normalmente têm um propósito—incorporar o passado em um novo discurso que convida os espectadores a repensarem o passado e o presente.

É esta releitura da Antropofagia presente em seu livro de 2009, Canibalizing the Colony, que você chamou de “The Unwieldy Dynamics of Anthropophagous Adaptation?

Exato. Nesse livro eu queria entender esse perene interesse, ao longo das gerações de cineastas, de voltar ao passado colonial. Parecia que, para muitos, havia assuntos não resolvidos. Quais foram as consequências sociais das práticas coloniais (e durante a maioria do século XIX no Brasil) que diziam respeito aos povos indígenas, à escravidão? Que significa para o Brasil e o México a dominação europeia na formação de países que desde o século XIX são independentes? Se os sistemas coloniais seguem afetando as vidas de tantas pessoas ao longo do século XX e o século XXI em que os filmes foram produzidos, até que ponto realmente ficou no passado a dominação europeia? Muitas vezes podemos explicar o enfoque cinemático em certa temática por motivos econômicos, mas na maioria dos filmes que estudei para os dois livros, seria difícil avançar nessa explicação. Normalmente, eram projetos de paixão, sem esperanças de ganhar muito. E, às vezes, os cineastas demoraram anos, e até décadas, em achar financiamento para os projetos, enfrentando, muitas vezes, a resistência do governo e/ou da censura. Acho que a explicação está em um desejo de responder a perguntas como as que mencionei, em querer dominar, ou pelo menos ressignificar os vestígios do antigo dominador. Chamei de “unwieldy” (de manejo difícil) porque esse processo de tomar controle e transformar o impacto social de textos que representam ideias e práticas tão arraigadas nas teias sociais de países pós-coloniais, não é simples. Se os documentos históricos, os eventos e/ou personagens ainda trazem à cena práticas como o racismo e a exclusão social baseado em cor, e tudo isto continua tão íntegrado à construção social, o desafio de um filme com projeto de mudar o pensamento dos espectadores é enorme. Ao mesmo tempo, as tentativas cinemáticas — às vezes muito explícitas em seus projetos revisionistas — têm uma potencialidade limitada de transformar o que simbolizam para os espectadores. Os textos podem seguir falando por si mesmos… 

Em seu artigo sobre o polêmico filme de Sergio Bianchi, Quanto vale ou é por quilo? (2005), inspirado no conto de Machado de Assis, “Pai contra mãe” (1906), você levanta a hipótese de que “Quanto vale?” apresenta uma alternativa possível para alguns dos problemas da nação. Hoje, quatorze anos após o filme do diretor paranaense e 113 anos após o conto do escritor carioca, esta quase crônica da solução anunciada chama a nossa atenção exatamente para o quê? Você vê relevância para o Brasil de hoje? 

Acho que Quanto vale ou é por quilo? sim, continua relevante. Aliás, vi que se exibiu em mais de um lugar em São Paulo por ocasião do Dia da Consciência Negra, além de indicações de outros importantes filmes brasileiros, como Quilombo, (Cacá Diegues,1984); Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002); A negação do Brasil (documentário de Joel Zito de Araújo, 2000), dentre outros. E, voltando a “Quanto vale?”, acredito que o projeto de Bianchi é relevante não só no Brasil. O filme ajuda a revelar as consequências nefastas de certos valores e práticas que muitas pessoas, com as melhores intenções, consideram positivos e até nobres, e como esses valores e práticas assistencialistas podem, ao contrário das intenções declaradas, perpetuar sistemas violentos e opressivos do passado. A minha leitura deste filme vê essa proposta de conscientização em termos de identidade social; quero dizer: provocar um questionamento de qualidades que um certo grupo social, neste caso nacional, pode associar de forma positiva a, por exemplo, generosidade ou caridade. Acredito que o filme de Bianchi mantém a sua relevância porque tanto as dinâmicas humanas que examina, quanto as consequências reais dessas dinâmicas estão presentes em todas as sociedades e, por isso, é fundamental que continuem presentes na cena da discussão.

Cinema, Slavery and Brazilian Nationalism, seu livro de 2005, traz um estudo crítico dos filmes sobre escravidão no Brasil entre os anos de 1976 e 2005. O livro busca compreender, a partir das várias noções de brasilidade, como estes filmes discutem a noção de identidade nacional – questão central em seu projeto de análise. Cada capítulo é dedicado a um filme: O Aleijadinho: paixão, glória e suplício (2000); Cafundó (2005); Quilombo (1984); Chico Rei (1985); Xica da Silva (1976). O que você destacaria, na sua leitura destes filmes, tendo em vista a configuração estético-política do cinema no contexto social brasileiro? 

Durante a pesquisa para este livro, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi que, apesar dos contextos histórico-políticos drasticamente diferentes dos cinco filmes, eles eram muito semelhantes em termos da definição de brasilidade que ofereciam aos espectadores, e os veículos cinemáticos que usavam para comunicar essa definição. Os cinco filmes não eram adaptações de textos concretos do passado, mas vejo a maneira em que repensam o passado também como “adaptações antropofágicas” de personagens que existem no imaginário brasileiro. Neste livro queria examinar exatamente como funciona este “repensamento” e a interface com o público. Vejo essa aproximação comunicativa como convites aos espectadores brasileiros a mudarem a maneira como definem o grupo social nacional a que pertencem e aos não brasileiros que assistem sem a experiência do pertencimento.

O que quer dizer com “grupo social nacional”?

Este livro toma em conta pesquisa na área de psicologia social, mais especificamente, a teoria de identidade social, que sugere que a nossa noção de quem somos se baseia bastante nos grupos sociais aos quais pertencemos, como religiosos, de sexo ou gênero, políticos ou nacionais. Dependendo do contexto em que estamos, o grupo a que atribuímos maior destaque em nossas mentes pode mudar. E também a maneira como entendemos a nós mesmos e a esse grupo, melhor explicando, as qualidades que definem o grupo para nós ou a particularidade desse grupo, todo este conjunto pode mudar também. Acho que as pessoas responsáveis por criar estes filmes se aproveitam dessas dinâmicas descritas pela psicologia social como apelo emocional e estratégia narrativa, seja para mantê-las, seja para desconstruí-las, mesmo que não estivessem pensando concretamente nesta pesquisa. Para mim, a teoria de identidade social me ajudou a examinar o que para muitos é intuitivo, fruto de observações sociais. 

Com isso em mente, diria que todos os filmes coincidem em usar quatro táticas: ligar passado e presente; enaltecer o grupo nacional; tratar o protagonista como substituto da população nacional; e animar aos espectadores a aceitarem o protagonista como modelo de como entender o grupo nacional. E nesse contexto estratégico-comunicativo, estes filmes articulam um entendimento de brasilidade que, para muitos espectadores, pode ser distinto ao que tinham em mente antes de ver o filme. No caso destes filmes, vejo que oferecem uma definição de brasilidade afrocêntrica e, ao mesmo tempo, sincrética (ou seja, inclusive de uma pluralidade étnica e religiosa no que apresentam como a essência simbólica do Brasil), o que interpreto como uma inversão parcial do legado de Gilberto Freyre. Estou me referindo à celebração relativamente eurocêntrica da combinação cultural brasileira de portugueses, africanos e indígenas. Embora a mensagem destes filmes sobre a escravidão e a revisão de brasilidade que propõem seja específica e reduzida, as estratégicas comunicativas que usam podem se ver em muitos filmes, brasileiros e não brasileiros, que convidam os espectadores a revisarem a maneira pela qual entendem um certo grupo social através de um herói. Este livro pretende contribuir para um entendimento mais amplo deste tipo de proposta cinemática.

Nestes últimos anos, novos filmes brasileiros estão chegando para sacudir o Brasil, nos tirar (se tivermos condição de enxergar) da zona do conforto, com reflexões valiosas, enquadres inusitados, imagens poéticas, diálogos que trazem silêncios, vazios, memórias intermitentes e prospecções de um futuro sombrio. Narrativas inconclusas pontuadas de perplexidade, talvez estejam representando a nossa própria perplexidade neste momento do Brasil e do mundo. Dentre eles, O Desmonte do Monte (Sinai Sganzerla, 2018), O céu de Suely (2006) e A vida invisível (2019) (ambos de Karim Aïnouz); Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019). Você pretende nos brindar escrevendo sobre eles?

O cinema brasileiro, tão rico e variado nos últimos anos, sim, está me chamando… (risos). Mas, neste momento, fiz uma alteração de rota e estou imerso no teatro popular português do século XVIII! Quando acabar esse livro, tenho projetos para continuar minha pesquisa com a produção cinemática brasileira e será um grande prazer contribuir no que puder ao estudo dos maravilhosos filmes que estão saindo agora no Brasil, herança de um passado mais ou menos recente. Espero de verdade – e estou contando com a resiliência dos cineastas e demais artistas – para que continuem a fazer, roteirizar e produzir filmes que ressignifiquem a identidade cultural brasileira no cenário das demandas contemporâneas.

MARIA CRISTINA CARDOSO RIBAS é Professora Associada em Letras, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na área de Literatura Brasileira, Literatura Comparada e Intermidialidades. Foi professora da PUC- Rio, nos Departamentos de Letras e Comunicação Social, até 2011. Seu livro Onze anos de correspondência: os machados de Assis (2008), publicado pela 7Letras e Puc-Rio, é o resultado de sete anos de pesquisa com fontes primárias na Academia Brasileira de Letras. Recentemente, foi publicado o seu estudo Re-reading Literature on Contemporary Cinema: Intermediality in Machado de Assis’s story ‘Father against Mother’ (1906) and Sergio Bianchi’s filme What is it worth? (2005), no livro (Re)writing without borders. Contemporary Intermedial Perpspectives in Literature ans the visual artes, pela Common Ground Research Networks.

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