Ricardo Lísias e a Literatura Particular e Global
em 24/03/2016

O trabalho do escritor Ricardo Lísias, autor de O Céu dos Suicidas, Divórcio e a série de ebooks Delegado Tobias, entre outros, foi tema de debate no mais recente encontro internacional do Conexões Itaú Cultural, mediado pela pesquisadora do projeto e mestre em Teoria Literária Rita Palmeira, que escreve o texto a seguir. Na mesa com o autor, sua tradutora para o alemão Petra Bös e o professor e diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio Karl Erik Schøllhammer, dinamarquês radicado no Brasil que estuda a obra de Lísias.


Ouça o registro em áudio do debate:


A terceira mesa do 8º Encontro Internacional do Conexões Itaú Cultural girou em torno da obra de Ricardo Lísias. Prolífico escritor, o paulistano de 40 anos tem diversos livros vertidos para outras línguas, além de ser reconhecido como um dos mais importantes nomes de sua geração, inclusive pela revista Granta (que o incluiu na edição dos 20 melhores jovens escritores brasileiros em 2012). Escreveu vários romances que ganharam prêmios e despertaram polêmicas, como Divórcio, de 2013, e o e-book Delegado Tobias (2014).

 

A mesa formada para discutir seus livros e a repercussão de sua obra no Brasil e no exterior contava com presença da tradutora alemã Petra Bös e do professor dinamarquês Karl Erik Schøllhammer.

 

Recentemente envolvido num processo judicial por causa de seu e-book de 2014, Lísias fez uma fala inicial em que se revelava sobretudo incapaz de se satisfazer com a reflexão sobre a própria obra: “Eu estou neste momento num lugar um pouco delicado para falar da minha obra”. Mas, apesar da alegada falta de jeito para falar de sua produção, Lísias mostrou, ao longo da mesa, contundência e clareza para pensar a própria escrita.

 

Ele tem criado, em seus últimos romances, protagonistas que se chamam Ricardo Lísias e guardam, para além do nome, traços biográficos muitas vezes semelhantes aos seus. Quando perguntado a respeito do uso do termo “autoficção”, respondeu que seu mal-estar com o conceito vinha de uma compreensão parcial do que isso queria dizer e sobretudo pelo uso que foi feito dele: “Eu não gostava mesmo. Quando saiu Divórcio, o termo foi usado para despolitizar o romance”.

 

A segunda a falar foi Petra Bös, que centrou sua apresentação inicial no modo como descobriu a obra de Ricardo Lísias e no que a levou a querer traduzir sua obra. Autora de Brasilianische Literatur in deutscher Sprache (em português Literatura brasileira em língua alemã, 2013), Petra contou as razões de ter decidido traduzir Divórcio: “Eu conheci a obra de Ricardo em 2012 quando o Marcel Vejmelka, da Universidade de Mainz em Germersheim, me chamou para a tradução de uma antologia de jovens autores brasileiros. Ele me mandou os 25 contos – eu poderia escolher o que quisesse e escolhi ‘Meus três Marcelos’ [1]. Logo depois eu descobri que desse conto saiu um romance. Entrei em contato com o Ricardo, ele me mandou o livro e eu comecei imediatamente a tradução”, explica, referindo-se a Divórcio.

 

A escolha do conto de Lísias se deveu sobretudo a questões de estilo que ela identificou no texto: “Gosto muito dessa linguagem vulnerável do Ricardo, é uma linguagem muito suave e muito moderna para os homens de hoje”. Petra destacou que, justamente por essas qualidades que identifica em Divórcio, acredita que o livro possa ter um bom desempenho comercial na Europa.

 

Encerrando a rodada das apresentações, Karl Erik Schøllhammer tratou da interpretação que faz da obra de Lísias. Professor do departamento de Letras da PUC-Rio, Schøllhammer tem pesquisado a literatura brasileira contemporânea e os resultados estão em artigos e livros que publicou, como Cena do crime: violência e realismo no Brasil contemporâneo (2013).

 

Schøllhammer destacou o cenário duplo de onde se pode observar a literatura contemporânea brasileira e que se organiza em torno da ideia da globalização. Ele destacou que se, por um lado, a literatura brasileira se globalizou porque passou a circular mais em feiras e festivais, e a ser publicada por grandes grupos editoriais internacionais que se instalaram no país; por outro, ela se globalizou em seu conteúdo: “Ou seja, onde o mercado criou uma globalização do romance, a literatura romanceou o global”.

 

A partir da esquerda: Rita Palmeira, Karl Schøllhammer, Ricardo Lísias e Petra Bös (foto Ivson Miranda)


A prosa de Lísias seria, para Schøllhammer, um indicador desse fenômeno que, no entanto, desmontaria a lógica centro-periferia. Essa literatura globalizada é, segundo o pesquisador, apesar de global, construída e pensada a partir do nacional: “Eu vejo que a literatura de Ricardo se situa nesse diálogo e transita com muita facilidade no mundo global de hoje. Transita na China, no Sudão, em Londres, Argentina, Bolívia. É um mundo que está de alguma maneira à sua disposição. Mas não está à disposição necessariamente para um conquistador, não é necessariamente um desejo de levar esse mundo para sua própria finalidade, como é esse mundo que de alguma maneira já está inserido aqui no mundo de São Paulo, no mundo da realidade global brasileira mais desenvolvida […], que é o ambiente da literatura de Ricardo: uma classe média que tem a capacidade de ir para o mundo e que tem a capacidade de sonhar sobre esse mundo e transitar nesse mundo sem maiores problemas”.

 

O nacional nos livros de Lísias estaria, ainda de acordo com Schøllhammer, “na perspectiva de certa inadequação e desconforto” – a vulnerabilidade de que falava Petra. A recusa do exótico na obra do autor de O livro dos mandarins e a criação de uma galeria de personagens pertencentes à classe média, moradores de São Paulo, com seus sonhos e ambições, exemplificariam a tese de Schøllhammer de que se trata de uma “periferia individual”.

 

Na rodada das perguntas, a atenção se voltou para a difusão da literatura de Lísias no exterior – suas percepções, o acompanhamento que faz das traduções, entre outros assuntos.

 

Ricardo é cético quanto a uma efetiva entrada dos autores brasileiros no exterior. Elenca as dificuldades de ser bem editado fora do país – traduções nem sempre completas, trabalho de divulgação e de distribuição insuficiente. O resultado, lamenta, é que dificilmente as vitrines das livrarias estrangeiras expõem seus livros ou de outros autores de sua geração: “Mas tem Paulo Coelho e Jorge Amado”.

 

Por isso, afirmou que sua posição em relação à tradução de seus livros é exigir as mesmas condições de publicação de qualquer outro autor da sua geração, independentemente do país de origem desse escritor. Petra Bös comentou a tradução que está terminando. Em exemplificação do fenômeno descrito por Karl Erik Schøllhammer – a primeira via do processo de globalização da literatura brasileira –, afirmou que nos últimos anos um vocabulário específico do país já não é completamente estranho ao público alemão, sinal de que a cultura brasileira se faz hoje mais conhecida do que anos atrás, ou – eis a segunda via do processo descrito por Schøllhammer – ela já prescinde desse vocabulário, porque está globalizada em seu conteúdo.


Um dos vértices do trabalho recente do professor dinamarquês é o conceito de “realismo afetivo”. Ele o explicou a partir da obra de Lísias: “Trata-se de uma literatura que não depende mais de uma forte descrição dos cenários, de características históricas. O convite ao mundo ficcional não se dá mais através desses marcadores, como era próprio ao realismo de outros tempos. O convite se dá pela observação do narrador. O contato com esse mundo é, portanto, efetivo. A aproximação que se constrói é afetiva”.

 

Sustentando ao longo do debate sua escolha por uma literatura política, Lísias explicou a razão de, nos últimos anos, ter dado aos personagens o seu próprio nome. Tratou-se, diz ele, de uma tentativa de radicalização. “A ideia era propor [ao leitor] um curto-circuito”. Produzindo a impressão de que sua escrita era autobiográfica, “o efeito estético seria maior, mas as consequências também, claro”, afirma, referindo-se ao processo judicial em curso.

 

Ricardo disse ainda que, na medida do possível, acompanha as traduções de seus livros e que suas viagens a outros países ocorrem principalmente em decorrência de convites de universidades, onde acaba ministrando aulas e dando palestras sobre a sua obra. Destacou, nesse sentido, o papel das embaixadas brasileiras, que costumam acompanhar e promover eventos.

 

Karl Erik chamou a atenção para a importância não só do trabalho feito nas universidades, mas dos laços que ligam os escritores aos países onde são publicados: “Por que João Ubaldo foi traduzido na Alemanha, Patrícia Melo nos Estados Unidos, Bernardo Carvalho na França? Porque moraram nesses países ou tinham amigos, pessoas próximas lá”.

 

A dimensão ocasional, aleatória, do modo como surgem as traduções da literatura brasileira no exterior, já detectada pelo Banco de Dados do Conexões, confirmava-se na fala dos convidados.

 

A última palavra da noite coube a Lísias, que reiterou sua crença na escrita e em sua dimensão política: “Eu não acredito nesse discurso de que a literatura perdeu a importância. A literatura é ainda algo muito importante”.

[1] Nota da autora: Petra se refere à antologia Wir sind bereit: Junge Prosa aus Brasilien, organizada por Marlen Eckl e publicada em 2013 pela editora alemã Lettrétage.


Para saber mais sobre os debatedores, assista estes depoimentos em vídeo:


Ricardo Lísias


Karl Erik Schøllhammer


Petra Bös


Leia mais sobre o 8º Encontro Internacional Conexões Itaú Cultural – O olhar do outro: a recepção da literatura brasileira: link.


Assista outros depoimentos em vídeo na playlist do Conexões Itaú Cultural.

 

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