Devoção e devoração: por que quis traduzir “Macunaíma”
em 10/11/2017

Katrina Dodson é escritora e tradutora norte-americana, doutora em literatura comparada pela Universidade da Califórnia em Berkeley, com uma tese sobre a poeta Elizabeth Bishop no Brasil. Mapeada pelo Conexões Itaú Cultural, ela participa de Tradução Intercultural: Desafios, debate que conta ainda com Eliane Conceição e Marta Peixoto e mediação de João Cezar de Castro Rocha, que acontece hoje no encontro que celebra os dez anos do programa, com transmissão ao vivo no site do instituto.

 

Sua tradução para o inglês de Todos os Contos, de Clarice Lispector, ganhou em 2016 o PEN Translation Prize, o maior prêmio da tradução nos Estados Unidos. Ela está escrevendo um livro sobre a tradução de Clarice e trabalhando numa nova tradução para o inglês de Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter, de Mário de Andrade (com previsão em 2019). Sobre esse último trabalho, ela escreve o texto a seguir, para o Conexões Itaú Cultural.

 

Devoção e devoração: por que quis traduzir “Macunaíma”

 

Por Katrina Dodson

 

 

Macunaíma 1928 (folha de rosto acervo Biblioteca Nacional)

Macunaíma (folha de rosto acervo Biblioteca Nacional)

Quando conto às pessoas que estou traduzindo para o inglês Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter, sobretudo aos brasileiros, seus olhos engrandecem e elas falam coisas assim: “Mesmo? Mas você é bem corajosa. Parabéns. Boa sorte. Não sei como vai fazer”. Nem eu. Mas sempre tem um jeito, né? Aprendi isso com os brasileiros enquanto morava no Rio de Janeiro. Porém acho que é mais a obsessão do que a coragem que me impele. Ou seja, é a obsessão que dá coragem para tentar o impossível.

 

Sempre gostei do estranho na literatura, dos textos que provocam encantamento ao mesmo tempo que incomodam. Ainda melhor quando trazem uma sensibilidade cômica. Isso é Macunaíma para mim. É um livro pelo qual me apaixonei embora não entendesse a maior parte das palavras. Daí a obsessão. Conheci uma das grandes personagens da literatura brasileira em 2004, num curso de prosa brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Lemos Machado de Assis, Mário de Andrade, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Rubem Fonseca e Caio Fernando Abreu, entre outros nomes. A experiência detonou uma explosão na minha cabeça, e fiquei admirada com a vastidão de riquezas numa literatura que não conhecia antes. Quando abri Macunaíma, foi um choque total. Achei a história doida, perversa, brilhante, perturbadora e engraçadíssima; era um grande estorvo e uma obra-prima. E depois andei por todo lugar murmurando a frase preferida do herói anti-heroico, “Ai! que preguiça”, e pensando: “Macunaíma sou eu”. Ainda faço isso de vez em quando…

 

Dizem alguns que o conhecimento mata o amor, que analisar o objeto do desejo tira a paixão. Discordo, pelo menos quando o objeto é uma obra de arte. Ao traduzir, posso apreciar o texto mais intimamente e ficar deslumbrada de perto. Por um lado, Mário de Andrade contou que compôs o livro de um só jato, durante seis dias, na rede no sítio do tio Pio em Araraquara, e assim essa “rapsódia” de “pura brincadeira”, como ele a chamava, merece ser lida num delírio parecido, sem pesquisar nada. Por outro lado, o cérebro de Mário abrangia um volume enorme de erudição que ele jogou no caldeirão do livro, e vale a pena examinar o fruto de anos de pesquisa e reflexão.

 

Mesmo que seja uma obra de ficção e não um estudo de antropologia, de cultura ou de folclore, Macunaíma contém todo um universo singularmente brasileiro em que eu queria mergulhar. Não se pode pular nenhuma palavra quando se traduz, e quase não existe leitor de Macunaíma que já não tenha pulado um monte de termos obscuros e inventados. Ao pesquisar mais de 30 palavras por página, às vezes, estou seguindo nos caminhos do saber de Mário que levam ao tupi e a outras línguas indígenas, às palavras de origem banto, aos regionalismos brasileiros, à história da língua portuguesa e sua morfologia, como na famosa e irônica “Carta pras icamiabas”. Estou descobrindo as fontes das citações, a flora e a fauna amazônicas, as raízes dos rituais e das músicas, como no capítulo “Macumba”, e de onde vêm personagens como Tutu Marambá, Pauí-Pódole e Ci, Mãe do Mato. Às vezes parece que nunca vou terminar esse trabalho tão laborioso, mas ganho muito prazer e muita energia da invenção onírica de Mário e de aprender tantas coisas.

 

Outro motivo que me mantém no eixo quando quero desistir, suspirando “Ai! que preguiça…”, é a consciência da grande necessidade de ter uma nova tradução de Macunaíma para o inglês. Descobri isso quando quis ensinar o livro num curso de literatura comparada na Universidade da Califórnia em Berkeley. Olhei a tradução do ano de 1984, de E. A. Goodland, e percebi que não prestava – todo mundo que conhece a literatura brasileira concorda nisso. A versão de Goodland perde muito do que há no original, inclusive a musicalidade, a ironia sutil e o senso de uma busca da “identidade brasileira”. A tradução transforma o romance em fábula folclórica sobre um povo longínquo e em história reduzida às aventuras de um herói grosseiro que só gosta de sexo, de dinheiro e da conquista dos outros. Goodland traduz “Ai! que preguiça” como “Aw, what a fucking life!”, que é mais como “Ai, que puta vida!”. Assim introduz uma profanidade e um tom de chatice, enquanto a frase original é muito mais leve e brincalhona. Não é surpresa que a tradução tenha ficado fora de catálogo.

 

Quero que a leitura do meu Macunaíma seja um desafio mas, ao mesmo tempo, um prazer. Ainda estou desenvolvendo a minha abordagem, mas meu alvo é o de acertar tanto o tom coloquial e cômico quanto o efeito lírico dos ritmos e das enumerações – as plantas, os animais, as formas de moeda e tal – que funcionam quase como poemas léxicos. Estou experimentando misturar traços do tupi com o inglês, sobretudo naquelas listas, como 10 tipos de palmeira ou 12 espécies de jacaré, para evocar o efeito da desorientação linguística e dos sistemas de classificação indígenas, contra os termos europeus. Vou incluir uma introdução e um glossário baseado em recursos como o Roteiro de Macunaíma, de Cavalcanti Proença, para esclarecer o contexto do livro a quem quiser, como o leitor brasileiro teria hoje em dia. No entanto, preferiria deixar o texto central sem a interrupção de notas de rodapé.

 

Junto com a obsessão e a necessidade, uma convergência de fatores recentes me conduziu na direção de traduzir Macunaíma. Voltando à questão da coragem: foi a Clarice que me deu a coragem de tentar com o Mário. Se eu não tivesse traduzido Todos os Contos, de Clarice Lispector, em dois anos muito intensos, nunca teria ousado com esse clássico modernista cuja linguagem é tão complexa. Quanto aos contos claricianos, havia a motivação do prazo e do editor exigente, que me forçaram a enfrentar os desafios. Depois de completar a tradução em 2015, vi que toda a obra de Mário de Andrade tinha caído em domínio público. Isso foi outro incentivo – de não ter de navegar a questão complicada dos direitos, o que facilitou o contrato com a editora.

 

Senti também que é um bom momento de reintroduzir Macunaíma ao público norte-americano. Há um interesse crescente aqui na literatura e na cultura brasileiras. Os leitores se incomodam menos diante do estrangeiro e do estranho. A hibridez linguística e cultural que o livro traz no seu modo antropofágico e irônico, em que não existem origens puras e autênticas, encaixar-se-ia bem com umas vertentes em nossa arte e nossa cultura contemporâneas. Escrito em 1928, o romance levanta questões complexas e ainda relevantes sobre o poder, a sexualidade, os preconceitos raciais, o capitalismo e a política.

 

Lydia Davis, escritora norte-americana e tradutora de Proust e Flaubert, falou recentemente que quer traduzir os livros que gostaria de ter escrito. Para mim, traduzir é uma maneira de me unir a uma obra amada, para melhor ver pelo seu olhar e sentir seu poder no meu corpo. Ao traduzir Macunaíma, estou devorando o livro antropofágico pouco a pouco, palavra por palavra, para possuí-lo e aí devolvê-lo de outra forma. Vamos ver o que sai. Tomara que os leitores norte-americanos gostem do sabor.

 

Mais sobre o escritor Mário de Andrade:

– Verbete na Enciclopédia Itaú Cultural

Ocupação Mário de Andrade

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