Gustavo Sorá, professor da Universidade de Córdoba, na Argentina, teve sua formação na pós-graduação feita integralmente no Brasil, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRJ, no Museu Nacional. Nos dois níveis da pós-graduação suas pesquisas se voltaram para a questão do livro, em distintos âmbitos. Para o mestrado, sua dissertação consistiu em uma etnografia das bienais internacionais do livro. Para o doutorado, estudou a Editora José Olympio, em particular o trabalho de edição de autores brasileiros.
Regressando à Argentina, depois de dez anos morando no Brasil (onde chegou a ser professor da UERJ), publicou Traducir el Brasil – Uma antropologia de La circulación internacional de ideas, livro no qual discute a presença do livro e dos autores brasileiros naquele país, e principalmente o valor simbólico do processo de traduções literárias.
A abordagem de Sorá reflete uma preocupação cara à Antropologia Social. Para além dos números, é a percepção que determinados campos – culturais, políticos, sociais – têm dos fenômenos que permite o estudo preciso das relações sociais estabelecidas. Essa abordagem inaugurada por Pierre Bourdieu, leva o estudo do fato social durkheimiano a um novo patamar, já que estabelece critérios objetivos para que as relações sociais se revelem nas disputas, contradições, e estas dentro de um contexto histórico específico.
Assim, para sintetizar uma tese central de Traducir el Brasil, Sorá constata que a quantidade de autores brasileiros traduzidos e publicados na Argentina é, numericamente, muito próxima daquela publicada na França. Entretanto, até meados do século XX, a percepção do que importava para o “reconhecimento” da literatura brasileira era o que se publicava em Paris, e muitas vezes até os próprios autores brasileiros “esqueciam” que tinham sido publicados na Argentina.
Isso fala muito sobre as questões que o Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira pretende fazer. Posto que não se trate simplesmente de estabelecer quantidades – que, em um primeiro momento, já sabemos ser maior que o suposto pelo conhecimento vulgar – da presença da literatura brasileira no exterior. Mas também mapear as relações e a própria percepção, aqui e alhures, se têm da produção literária aqui da Terra Papagalis.
Convidado para participar do I Encontro Internacional Conexões Itaú Cultural, Sorá concordou em responder algumas perguntas para o nosso blog.
Felipe Lindoso – Sabemos da importância de dois campos específicos de difusão internacional da produção literária. O primeiro são as grandes feiras de direitos de autor – Frankfurt é ainda a mais importante, mas não a única; o segundo é o dos estudos acadêmicos, que geram demandas de tradução. Saindo do âmbito particular das traduções de autores brasileiros na Argentina – tema do seu livro – gostaria que comentasse a importância e a especificidade desses dois campos.
Gustavo Sorá – Efetivamente, para compreender a diversidade de fatores que podem promover traduções, imaginemos um espaço de possibilidades organizado entre dois pólos: um dominado por interesses econômicos e outro dominado por interesses culturais. O primeiro seria o motor da tradução de livros que as editoras consideram ter um mercado garantido; o segundo de traduções que procuram atrair prestígio simbólico para uma editora, para um tradutor, para um diretor de coleção, para um pesquisador, etc.. Para o primeiro pólo, as feiras internacionais de livros podem jogar um papel central, especialmente aquelas denominadas de mercados de venda de direitos autorais, como a de Frankfurt. Para o segundo pólo, a universidade é um lugar decisivo.
Para muitos – pesquisadores e mesmo editores -, o enigma das feiras de livros é a sua razão de ser na era da internet. Os profissionais do mundo do livro sempre pesquisaram as novidades editoriais através de um sistema de comunicação específico. Grande parte da atividade diária de um editor consiste em escrever cartas, ler publicações especializadas sobre novidades literárias e também sobre os desenvolvimentos das práticas de mercado, dos ofícios do livro, de formação, etc. As decisões sobre a compra de direitos para tradução e edição podem ser tomadas à distância. Mas muitos contratos, especialmente os mais disputados, se fecham em Frankfurt ou em outras feiras de direitos autorais. A explicação é antropológica: a centralidade das relações cara a cara, o lado não explícito dos contratos que passa por relações de afinidade, de confiança, de legitimação simbólica gerada por representações sobre a tradição, sobre o prestigio de um editor, de uma praça de mercado, de uma língua ou de uma nação, etc. Não é à toa que grande parte das relações entre profissionais, em Frankfurt, acontece fora do tempo e espaço da feira, em coquetéis, em jantares – muitos deles suntuosos -, em festas. Esse é o aspecto mais fascinante das feiras internacionais de livros, o seu “primitivismo”, no sentido positivo do termo. Ainda preservam a função original da exposição das praças de mercado do fim da época medieval e início da Renascença.
No outro pólo, os pesquisadores ou professores plurilingues e/ou com experiências no meio acadêmico e científico internacional, frequentemente solidificam posições no espaço nacional importando novidades do exterior. A abertura das elites culturais brasileiras (que até há pouco tempo eram quase o único público das universidades) para o aprendizado de outras línguas, limitava a “necessidade” de traduções para o restrito mercado universitário. Isto fez que a história da tradução no Brasil devesse ser compreendida em relação à história da circulação de livros em outras línguas. Essa foi uma das minhas conclusões parciais da pesquisa inacabada sobre a tradução de autores argentinos no Brasil. O meu censo – de traduções de autores argentinos no Brasil – mal ultrapassou os cem títulos (comparado com as quase 500 traduções de autores brasileiros na Argentina). Tratava-se de um desinteresse diante da produção intelectual Argentina? Escapando ao subjetivismo dessa formulação, a objetivação dos dados apontava, ao contrário, na direção da circulação e leitura de livros argentinos (não só de autores argentinos) no Brasil, que foi muito intensa entre os anos 1940 e 1980. Ou seja, “o universo leitor” para aqueles livros não precisa tê-los traduzidos.
Atualmente, a diversidade e extensão do mercado editorial brasileiro, têm acelerado o mercado de traduções. Mas até pouco tempo, nas grandes capitais podiam ser encontrados com facilidade livros franceses, espanhóis, ingleses, alemães. Para verificar essa particularidade brasileira, acho sempre muito interessante a comparação com a circulação do livro na América hispânica. Nesses países, talvez a potência do espanhol como língua internacional freia o interesse do público pelo aprendizado de outras línguas. Daí não se observa nesses países a mesma abertura que têm o público leitor brasileiro para o uso de línguas estrangeiras nem a disponibilidade de livros do estrangeiro, com exceção dos produzidos nos outros mercados de língua espanhola.
Felipe Lindoso – Pelo que você nos disse, percebe-se que a percepção – e a recepção – das literaturas passa por processos muito mais complexos que os que transparecem na simples quantificação do que se faz. Entretanto, estamos embarcando no projeto do Mapeamento, e gostaria de saber a sua opinião sobre a sua relevância.
Gustavo Sorá – Como diz Pascale Casanova no livro “A república mundial das letras”, as literaturas não são a emanação de uma identidade nacional. Elas se configuram numa rivalidade sempre negada, em lutas literárias, sempre internacionais. Logo, a compreensão da literatura e da cultura brasileiras, assim como qualquer outra, não pode se realizar sem esses fatores de vinculação com um espaço internacional inclusivo, hierárquico e desigual. Apesar desse fator histórico e social, sublinhado por Pierre Bourdieu em suas pesquisas sobre a circulação internacional das idéias, 90% dos estudos sobre a literatura sempre foram subordinados às fronteiras (políticas e não literárias!) nacionais. Inclusive quando se fazem “estudos comparativos”, estes procedem pelo contraste termo a termo de duas entidades separadas e não a partir da história da constituição de espaços transnacionais. Tudo isso explica a demora no desenvolvimento de pesquisas antropológicas e históricas sobre a tradução, por exemplo. Sob essa perspectiva, iniciativas como a do Itaú Cultural são imprescindíveis, quase urgentes, porque podem questionar fortemente os pressupostos nacionais e centrados dos marcos cristalizados para a compreensão da literatura e da cultura nacionais.
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