Milton Hatoum: o maior prêmio para o bom escritor é o bom leitor
em 22/03/2016

Texto do antropólogo e jornalista Felipe Lindoso, consultor do Conexões Itaú Cultural, sobre a mesa que mediou no mais recente encontro internacional do projeto, a respeito do trabalho de Milton Hatoum, autor de romances como Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, entre outros, com obras traduzidas para mais de 14 línguas. O debate reuniu o escritor com a professora de literatura latino-americana e brasileira na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) Consuelo Rodriguez Muñoz e o professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) João Cezar de Castro e Rocha.

 

Ouça aqui o registro do debate:



O maior prêmio para o bom escritor é o bom leitor


Essas foram as palavras finais do escritor Milton Hatoum, ao encerrar a primeira mesa do 8º Encontro Conexões Itaú Cultural. E acredito que possam ser considerados o principal eixo da conversa com a professora Consuelo Rodriguez Muñoz e com o professor João Cezar de Castro e Rocha, que tive o prazer de mediar.

 

Os bons leitores foram tema recorrente em todas as intervenções do Milton, que credita a ampla difusão de seus romances à sua existência: professores e pesquisadores universitários, do Brasil e do exterior. “Essas pessoas formam os bons leitores e permitem que os livros passem a ser absorvidos também pelo chamado leitor comum”. Bons e generosos leitores como Jorge Amado, que já havia recomendado seu livro para seu tradutor francês antes que a Seuil se interessasse pela publicação de Relatos de um Certo Oriente, e como os resenhistas, no Brasil e no exterior, abriram espaço para a apreciação de seus romances em grandes jornais.

 

Milton Hatoum e eu somos conterrâneos, nascidos em Manaus, e nossas mães eram amigas, como ele lembrou. Para além do exótico, é evidente que a paisagem e a história da amazônia são componentes de seus romances, e de muitos dos seus contos. Os levantinos migrados para a Amazônia – de origem sírio-libanesa e judaica sefardita – são uma das camadas dos sedimentos humanos que foram se depositando na região, desde as populações indígenas originais até os atuais migrantes atraídos pela Zona Franca de Manaus. Todos devidamente trabalhados pela nossa antropofagia.

Felipe Lindoso, Consuelo Muñoz, Milton Hatoum e João Cezar Rocha (foto de Ivson Miranda)

A partir da esquerda: Felipe Lindoso, Consuelo Muñoz, Milton Hatoum e João Cezar Rocha (foto de Ivson Miranda)

 

O 8º Encontro do Conexões teve como centro a conversa de quatro escritores contemporâneos com críticos brasileiros e estrangeiros sobre a percepção da aceitação e da penetração da literatura brasileira no exterior, evidentemente centradas nas experiências particulares de cada um deles.

 

Milton relata que não esperava que seu primeiro romance fosse traduzido tão rapidamente. “Na verdade, não esperava nada, nem leitores, nem críticas, e nem traduções”. No entanto, Relatos de um Certo Oriente ganhou o Jabuti no ano de sua publicação e, naquele mesmo ano, seu editor levou o livro para a Feira de Frankfurt e conseguiu vender os primeiros direitos de tradução do romance.

 

Segundo Milton, a publicação de autores brasileiros no exterior depende de três fatores:

– Ter um agente literário;

– O editor brasileiro levar o livro e conseguir vendê-lo em uma das grandes feiras internacionais, particularmente Frankfurt;

– O interesse de tradutores e professores de literatura brasileira no exterior.

 

Desses três requisitos, na ocasião ele dispunha de dois: o editor levar o livro e ter condições de vender os direitos em Frankfurt, e já o apoio de professores e tradutores.

 

Um personagem que atuou por trás da cena nesse momento foi Jorge Amado, “uma figura generosíssima”. Jorge já havia escrito para seu tradutor francês sobre o livro. Mais uma vez, um desses “bons leitores”. Michel Riaudel, que mantinha a duras penas uma publicação sobre cultura brasileira em Paris (e é mapeado do Conexões), também se entusiasmou pelo livro e escreveu uma bela resenha.

 

As boas resenhas que o livro recebeu em vários países abriram espaço para novas traduções, e essas geraram mais resenhas e mais atuação de professores no exterior.

 

O seu segundo romance, Dois Irmãos, levou onze anos para ser terminado e publicado. João Cezar de Castro Rocha, em sua intervenção, destacou o “cuidado na fatura” dos romances, que transparece nos largos períodos que transcorre entre um e outro.

 

Com Dois Irmãos, Milton já tinha agente literário trabalhando.

 

O autor já não sabe de cor quantas resenhas foram publicadas no exterior. Inclusive em idiomas que ele não domina, como árabe, coreano, japonês, grego e outros (que estão transcritos em seu site – www.miltonhatoum.com.br – nos idiomas originais). Destacou particularmente a resenha escrita pela prestigiada escritora inglesa Antonia S. Byat sobre Dois Irmãos, publicada no Guardian, em página inteira, que contribuiu para a edição de bolso do livro. Aliás, edições em livro de bolso de seus romances também existem na Alemanha e na Itália, o que não é comum para autores latino-americanos traduzidos.

 

A esses “leitores qualificados” Milton Hatoum atribui boa parte da receptividade do público. Confessa que já perdeu a conta de viagens, tanto no Brasil como no exterior, feitas para participar de colóquios e simpósios sobre literatura brasileira, para os quais é convidado em função dos trabalhos de professores.

 

Consuelo García Muñoz, professora da UNAM – Universidad Nacional Autónoma de México, discorreu em sua intervenção inicialmente sobre os percalços da divulgação da literatura brasileira naquele país, ressaltando o esforço pioneiro da prof. Walkiria Wey, por muitos anos diretora do Centro de Estudos Brasileiros, e professora da UNAM. Informou sobre as dificuldades institucionais para o ensino e pesquisa da literatura brasileira. Até poucos anos, estes estavam integrados na área de Estudos Latino-americanos, e só recentemente foi constituído o departamento que estuda literaturas em português.

 

Consuelo García, que foi aluna de Walkíria Wey, lembra que foi em uma antologia de contistas brasileiros, organizada por esta última, que teve seu primeiro contacto com a literatura de Milton Hatoum. Ressaltou a dificuldade de encontrar traduções de autores brasileiros. Mesmo com várias traduções publicadas na Espanha, na Argentina, Colômbia e Cuba, é difícil encontrar os livros de Milton Hatoum no México. A distribuição de livros em espanhol pelos diferentes países da América latina não é tão fluida como alguns supõem.

 

O Seminário de Traduções, outra iniciativa de Walkíria Wey, é um dos meios pelo qual os alunos interessados em literatura brasileira podem ter acesso a autores brasileiros contemporâneos. Pouco a pouco, vários professores mexicanos de literatura vão tomando conhecimento da obra de Milton, o que mais uma vez demonstra a importância das conexões dentro do mundo académico para o conhecimento e estudo de autores brasileiros contemporâneos. Mais uma vez, os “leitores privilegiados” assumem um papel de destaque.

 

Consuelo García afirmou que, no âmbito acadêmico, a obra de Milton Hatoum é conhecida, estudada e respeitada, considerando-o como um dos autores brasileiros contemporâneos mais importantes. O grande público, entretanto, tem dificuldades de acesso e ainda não conhece muitas obras de autores brasileiros – clássicos e contemporâneos – pela falta de traduções e edições dos livros no México. A divulgação e o estudo da literatura brasileira são feitos, assim, por meio dessa rede acadêmica.

 

A inexistência de uma política cultural consistente e continuada por parte do governo brasileiro é sempre destacada. Todos os participantes da mesa lembraram a importância do programa de apoio às traduções da Fundação Biblioteca Nacional. Mas, ao mesmo tempo, lamentaram a ausência de uma articulação mais ampla e sistemática, nos moldes do Instituto Cervantes, do Instituto Camões, do Goethe Institut, da Alliance Française e outras instituições similares de outros países, enquanto o projeto do nosso Instituto Machado de Assis nunca avança.

 

João Cezar de Castro Rocha destacou, por sua vez, o que considera como aspectos importantes nas traduções dos livros de Milton Hatoum. A continuidade dos tradutores é uma delas. Vários dos livros foram traduzidos pelo mesmo tradutor. Em alguns casos, citou, a mesma tradução recebe dois títulos diferentes nas reedições. Citou dois exemplos interessantes. O Relato de um Certo Oriente foi traduzido por Ellen Watson. Na primeira edição recebeu o título de The Tree of the Seventh Heaven, que remete à tradição cristã, judaica e islâmica do “sétimo céu”, a morada de Deus. Essa edição foi publicada nos EUA pela Atheneum. A mesma tradução – revista por John Gledson, quando publicada pela Boomsbury na Inglaterra já recebe um título que é a tradução do título original: Tales of a Certain Orient. O mesmo fenómeno João Cezar notou na tradução alemã. A tradução de Karin von Schweder-Schreiner publicada pela Piper Verlag recebe o título, na primeira edição, de Emilie oder Tod in Manaus (Emilie, ou morte em Manaus, título que, lembra João Cezar, lembra o Morte em Veneza, de Thomas Mann, o que é sinal de muito prestígio). Na segunda edição, publicada pela Surhkamp, o título passa a ser Brief aus Manaus (Carta de Manaus).

 

Para João Cezar de Castro Rocha essas mudanças são significativas. Indicam que a percepção da obra de Milton Hatoum deixa de ser a de “um escritor do subúrbio do mundo”, que precisa de “apoios” externos à sua obra para ser difundido, para o reconhecimento como um escritor “tour court”, dispensando os exotismos e referências externa.

 

Em seus comentários finais, Milton Hatoum outra vez enfatizou o papel dos professores e tradutores na difusão de seus livros, no Brasil e no exterior. “O trabalho deles é que amplia o público leitor”.

 

Comentou também uma observação de João Cezar de Castro Rocha, quando este mencionou o longo processo de elaboração dos seus livros, e assinalou que, para muitos dos novos escritores, a “pressão por publicar feita pelos editores” acaba prejudicando-os. Milton afirma que nunca sofreu esse tipo de pressão. “A ânsia do autor é que é a grande pressão. O autor é um ansioso”, mas ele consegue controlar isso e só produz com muito vagar. Seu livro de escritura mais rápida,  Os Órfãos do Eldorado, que foi encomendado e deveria ser entregue em um ano, levou afinal dois anos e meio para ficar pronto.

 

Destacou a importância do aumento das traduções, da “chegada de outros escritores”. A maior presença da literatura brasileira ajuda os autores em conjunto, afirmou, elogiando o programa de Bolsas de Estímulo à Tradução da FBN. “Por causa da língua portuguesa e da ausência de uma política da língua, ficamos em grande desvantagem diante dos autores hispano-americanos”.

 

Comentando uma observação de Consuelo García de que ele merecia ganhar o Nobel, “ou pelo menos o Prêmio Camões”, Milton Hatoum concluiu:

 

“O grande prêmio para o escritor é o bom leitor”.


Saiba mais sobre os debatedores:


Milton Hatoum: vídeo/ rádio/ verbete na Enciclopédia.


Consuelo Rodriguez Muñoz: vídeo.


Leia mais sobre o 8º Encontro Internacional Conexões Itaú Cultural – O olhar do outro: a recepção da literatura brasileira: link.


Assista outros depoimentos em vídeo na playlist do Conexões Itaú Cultural.

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