A editora Corregidor, sediada em Buenos Aires, Argentina, tem publicado, nos últimos anos, a coleção Vereda Brasil, dedicada à literatura brasileira. Chega agora às prateleiras, o livro de contos A Bela e a Fera (como La bela y la bestia), de Clarice Lispector, com texto crítico de Constanza Penacini, e tradução e prólogo de Gonzalo Aguilar.
O Conexões Itaú Cultural aproveitou o lançamento para conversar com Gonzalo sobre a tradução de Clarice para o espanhol e sobre como a escritora é vista na Argentina.
Conexões – O projeto de adaptar o livro de contos de Clarice Lispector, A Bela e a Fera, veio de você ou da editora?
Gonzalo Aguilar – As primeiras traduções de Clarice Lispector para o castelhano foram feitas em várias editoras argentinas: Sudamericana, Corregidor, Rueda. A tal ponto que Clarice veio a Buenos Aires em 1976 para a Feira do Livro – e sua visita teve tanto impacto que nós a reconstruímos em uma das traduções (as traduções de Vereda Brasil, coleção que codirijo com Florencia Garramuño e Maria Antonieta Pereira, traz sempre ensaios críticos; já lançamos vinte e sete títulos editados). Lamentavelmente, nos anos 1980, as traduções começaram a ser feitas na Espanha e a obra finalmente começou a ser editada pela Siruela. As edições eram muito boas, mas muito caras na Argentina e isso fez com que a representante de seus direitos nos países de fala hispânica (a conhecida agente literária Carmen Balcells) vendesse os direitos de tradução para os países latino-americanos separadamente do mercado espanhol. Algumas editoras argentinas, então, se interessam em comprar os direitos. Em sua maioria, foram adquiridos pela Corregidor (que publica a coleção Vereda Brasil) e Cuenco de Plata. Nós já havíamos editado O Lustre, com prólogo de Raúl Antelo, porque tínhamos os direitos, mas com os últimos contratos conseguiram sete títulos para a editora: Um Sopro de Vida, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, A Hora da Estrela, A Legião Estrangeira, A Via Crucis do Corpo, A Cidade Sitiada e A Bela e a Fera. Junto com Florencia Garramuño, armamos uma equipe em que participaram Paloma Vidal, Rosario Hubert, Constanza Penacini e Mario Cámara. Traduzimos vários críticos reconhecidos que trabalharam a obra de Clarice: Benedito Nunes, Ítalo Moriconi, Evando Nascimento, Silviano Santiago, Vilma Arêas e Benjamin Moser. Respondendo então a pregunta: não foi uma iniciativa minha, e sim editorial. Sempre quisemos os direitos dos livros de Clarice e ocorreu uma feliz coincidência.
Traduzir Clarice para o espanhol da Argentina é diferente? De que forma?
A grande diferença está no “voseo”: porque no castelhano do Rio da Prata e da Argentina usa o “vós” ao invés do “tu”, e isso produz uma grande mudança e uma grande dificuldade, porque não se pode abusar do “voseo” (os livros circulam em todos os países com fala hispânica). Depois, como sempre, se combinam os problemas da estrutura diferente do castelhano e do português, além dos recursos estilísticos. Há que definir quais diferenças formam parte da língua e quais do estilo. Além do fato de que a diferença nem sempre é clara, em Clarice há uma escrita muito forte, muitas vezes com frases curtas, que em castelhano pode resultar dissonante. Essa dissonância tem que ser mantida porque faz parte da singularidade da escrita de Clarice. Essa evolução dentro da própria língua (tal como queriam Walter Benjamin e Haroldo de Campos para a tradução) tem um efeito duplo: produz um tremor na literatura local e faz com que o texto continue em outro idioma. No caso de Clarice, esse efeito se deu porque encontrou muitos leitores (sobretudo mulheres, mas não apenas) que encontraram algumas resoluções narrativas na obra de Clarice que em nossa tradição não existiam. Entre outras, me parece fundamental o modo em que Clarice trabalha o sentimental e os afetos e, no caso sobretudo de A Hora da Estrela, suas relações com o popular e os meios de massa.
Como é o panorama de leitura de Clarice Lispector na Argentina?
A primeira leitura de Clarice foi ao principio dos anos 1970, quando a tradução de seus livros foi lançada segundo dois preceitos: latino-americanização e pertencimento ao gênero fantástico. A latino-americanização, que se aplicava aos escritores brasileiros e de outros países do continente, orientava a leitura da narrativa como construção de identidades (sociais, políticas, culturais). Isso, que funcionou com Clarice, foi muito forte com Guimarães Rosa, que se fez conhecido pela entrevista concedida a Luis Harss em seu libro “Los Nuestros” (entrevistas com escritores latino-americanos consagrados ou em vias de), um best-seller da época. Essa latino-americanização de Guimarães se viu também nas leituras que suscitou crítica – os críticos uruguaios Emir Rodríguez Monegal e Ángel Rama o contestaram a partir de diferentes conceitos da literatura. Enquanto Monegal via Guimarães como um joyciano experimental que mostrava a futilidade de todo regionalismo (em uma visão que tem afinidade com o que fizeram os poetas concretos), Ángel Rama sustentou que ele era um “transculturalista”, alguém capaz de trabalhar com a combinação do regional e do universal (esse sentido também está no neologismo que Antonio Cândido criou para ler Guimarães: suprarregionalismo). Um marco nessa latino-americanização dos autores brasileiros foram as entrevistas que fazia a popular revista Crisis, que entrevistou Guimarães e Clarice. Se Guimarães, dos autores do boom, encontrava mais proximidade com García Márquez, Clarice foi associada a Cortázar. Isso fez com que Clarice fosse lida como uma contista da linha do fantástico. Foi também relacionada a escritoras muito populares, como Marta Lynch, mas que não tinham muito a ver com sua poética. Nenhuma dessas linhas de leituras colocava Clarice como o centro do olhar, e creio que também produziu vários equívocos. Foi uma leitura muito diferente em relação ao que se começou a fazer a partir das edições dos anos 1990, articuladas pelas perspectivas de gênero e do que poderíamos denominar narrativa pós-modernista. As edições Corregidor, para se ter ideia, vêm acompanhadas por ensaios críticos e incluímos, entre outros, Hélène Cixous e Ítalo Moriconi. O texto de Moriconi está incluído em A Hora da Estrela, que saiu enquanto outras editoras publicavam obras de João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu: creio que todo esse conjunto de textos colocou Clarice como uma autora articulada que enfrentou a crise da narração e da experimentação modernista, propondo novas saídas.
O que, para você, faz da literatura de Clarice passível de tradução em diversos idiomas?
Clarice percebe o funcionamento do feminino não como uma categoria a-histórica, e sim situado no patriarcalismo brasileiro. Acontece que esse patriarcalismo tem uma existência internacional e em Clarice está sublinhado com um olhar crítico, uma reivindicação do corpo e do tátil, e uma escrita exata e aguda que faz com que, mesmo que não haja uma localização específica, haja um conflito de caráter universal. A mudança na relação com gêneros sexuais em boa parte do mundo é acompanhada pela leitura de Clarice, que funciona como uma máquina para compreender, sentir e inventar uma política de afetos. Curiosamente, isso já estava em seu primeiro libro, Perto do Coração Selvagem, e sua potencia já é tão forte como a estrutura de poder que é demonstrada em sua escrita e que ainda continua vigente. Em suma, Clarice é outro tentáculo a mais da máquina sensorial da literatura que aponta o que virá.
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