“Vai um sujeito / Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama / É a vida […]”(1)
[Manuel Bandeira (grifos nossos)]
I – Saindo de casa (antes de entrar no recinto principal)
Se procurarmos em qualquer dicionário on-line o significado de conexões, logo encontraremos uma definição já sabida: “É o plural de conexão. O mesmo que: ligações, nexos, vínculos”. Algo bastante simples, fácil e compreensível.
Seja pelo uso cada vez mais frequente nas mídias digitais, seja pelo nosso já desgastado entendimento de rede, o fato é que não temos problema algum para entender o sentido da tal palavra. Vale lembrar, porém, alguns brevíssimos detalhes cotidianos que às vezes nos escapam. Por exemplo: quando a impossibilidade de conexão entre mídias, hoje, pode levar um sujeito às raias do desespero. E o sujeito, não o nativo digital, mas o imigrante digital, ainda ostenta, de quebra, o trauma do antigo “erro fatal” que irrompia nas telas do computador culpabilizando o usuário. Um verdadeiro sintoma de suicídio iminente.
Ora, considerando a hipótese de que se desconectar é se excluir, conectar-se serviria aos mais desejados rumos à inclusão. Ocorre, porém, a síndrome do sujeito multifocado. De maneira simplificada: como as redes se avizinham em ritmo de fissão nuclear, o núcleo de um elemento é bombardeado em cadeia, o controle se perde (da vida, inclusive), o desconforto se instala e os efeitos ganham força à revelia de seus agentes. É quando cadeia, na sua fisiologia programada e maquínica, traz consigo a dupla potência significativa de rebeldia e obediência, autonomia e prisão, resistência e destino.
O calcanhar de Aquiles desse processo destruidor talvez seja o isolacionismo do contato. O individualismo do gesto. Entre a diplomacia e o temor. Quando dar rima com perder. Mas todo mundo já sabe que: uma andorinha não faz verão; um sujeito sozinho não faz conexão (a rima é pobre, mas o sentimento é pobre também); solidão pode não representar integridade; e o branco asséptico do papel não resiste à escrita como nódoa necessária. “[…] é no papel. No branco asséptico, que o verso rebenta. / Como um ser vivo / pode brotar / de um chão mineral?”(2)
Talvez a avalanche diária, a violência banalizada que nos chega em presença e em ausência, nos esteja tornando impermeáveis. Urge acolher a nódoa no brim. Impermeabilidade é menos proteção e mais isolamento. Em estado de aporia, como fazer conexões?
II – Na primeira esquina
Questões cruciais como essas vêm sendo pensadas em pouco mais de uma década num projeto que reúne pesquisadores, professores, escritores, artistas. Ao longo de 12 anos, profissionais de quatro continentes e nove países que trabalham diretamente com ensino, pesquisa, tradução e edição da literatura brasileira no Brasil e no exterior vêm para um grande encontro. Tempo cronológico: uma semana. Tempo de escuta: imensurável.
Não se trata de apenas mais um período em que as pessoas falam sem necessariamente ser ouvidas. Ou que vêm simplesmente para marcar um espaço ou fundar território. Não estamos falando de fundação ou posse, tampouco de descobrimento. De certa forma há um palco quase teatro, previamente preparado, mas há trânsito, há rodízio no cenário das discussões e uma generosidade no ar acolchoando qualquer eventual desconforto. Tudo isso em um espaço especialíssimo do qual se conhece muito pouco. É preciso conhecer e adentrar o recinto.
Se há expectativas prévias não necessariamente positivas, elas vão se transformando ao longo das atividades, que surpreendem e trazem outros modos de ver, modos de ser. Como a programação é construída de forma a estimular a escuta ativa dos participantes, os palestrantes são também público de outros palestrantes, e a plateia se abre generosamente num processo em que todos se tornam mestres e aprendizes.
Na dinâmica diferenciada das mesas, os pesquisadores trazem suas análises ao mesmo tempo que relatam a saudável errância de suas pesquisas, a parte da própria experiência vivida ao longo do processo. Assim, entre muitos pesquisadores, ouvimos a delicadeza e o conhecimento de Nádia Batella Gotlib – professora de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP) – falando de Clarice Lispector na mesa 1 (estudos de caso); a fala bem-humorada, clara e precisa de Kathryn Sanchez – professora de estudos brasileiros e portugueses na Universidade de Wisconsin (Estados Unidos) –, ao lado de Richard Gordon – professor de literatura e cultura brasileiras e hispano-americanas na Universidade da Georgia (também nos Estados Unidos) –, muito atento e sensível à narrativa fílmica no Brasil desde a década de 1970. Ambos, assim como Leila Lehnen, professora de literatura e cultura brasileira na Universidade de Brown (Estados Unidos), falaram sobre os estudos de cinema brasileiro no exterior e como a abordagem pode contribuir para o ensino e o diálogo com a literatura (mesa 2).
Gostaria de citar também a aventura complexa que é a tarefa da tradução de Guimarães Rosa, Chico Buarque, Clarice Lispector e Machado de Assis, conforme os relatos minuciosos de Alison Entrekin, Fiora Thompson-De-Veaux e Chika Takeda (mesa 4), que traduziu Memórias Póstumas de Brás Cubas para o japonês. São trabalhos transculturais, daí a complexidade da tradução elevada à máxima potência.
Na escuta sensível das mesas, o mosaico constituinte do pesquisador e pesquisa vai-se fundindo em mandalas, e as partes dissociadas agregam-se, no ouvido da plateia, sob nova configuração em que cada um, com modulações próprias, se sente também um constituinte.
O realce aqui dado à palavra escuta deve-se a uma perspectiva em que a literatura precisa ser experienciada de maneira sinestésica. Não se lê somente com os olhos, bem como não se ouve apenas com os ouvidos. Os próprios sentidos conectam-se em redes internas e externas para redimensionar, de maneira plural, o que estão “vivendouvindo”.
Estamos falando, aqui, do Conexões – projeto inovador porquanto representa, em configuração não usual, um mapeamento detalhado da presença da literatura brasileira no exterior e que, no esforço de abrir espaço ao protagonismo de atividades nem sempre valorizadas pela sociedade, traz à cena estudos recentes sobre tradução e edição da literatura brasileira fora do país – e, a partir de 2018, com o feliz acréscimo da chamada sétima arte no escopo da pesquisa.
III – A nódoa no brim
“[…] Por fim, o encontro enfrentará uma pergunta difícil, mas necessária: depois do auge vivido entre as décadas de 1970 e 1990, estará o brasilianismo em vias de extinção?” (3)
No penúltimo dia, fomos a uma visita guiada por João Cezar de Castro Rocha, professor e curador do evento, ao Espaço Olavo Setubal, que ocupa dois andares do Itaú Cultural. Inaugurada em 2014, “a exposição permanente reúne obras de duas coleções específicas do maior acervo de arte de uma companhia privada da América Latina: Brasiliana Itaú e Itaú Numismática” (4). Conforme indicado no site, da primeira estão disponíveis para o público 969 itens, entre pinturas (12), tridimensionais (16), desenhos, aquarelas e têmperas (30), gravuras (693), mapas/cartografia (16), manuscritos de literatura (7), documentos (76), periódicos (5), livros (98) e caricaturas (96). E da segunda, 395 peças, entre moedas (281), medalhas (96), condecorações (10), barras de ouro (6) e objetos (2).
A fascinante experiência da visita foi um suplemento ao projeto, apresentado no minicurso pelo próprio João Cézar no primeiro dia, intitulado Da Brasiliana aos Brasilianistas. A análise foi subdividida em itens correspondentes a mais um livro que o pesquisador pretende publicar, propondo uma análise diferenciada da cultura brasileira, a qual, como senderos que se bifurcam e enredam, discutiu alguns eixos não necessariamente nesta ordem, tais como: a centralidade do exílio na cultura brasileira (vê-se o Brasil melhor quando se está fora dele); o estabelecimento do olhar estrangeiro internalizado e naturalizado como forma de o brasileiro ver a si próprio; o fenômeno do apagamento do olhar do outro; o conceito de brasileiro (pela sufixação) não como identidade, mas como profissão, mercador das coisas do Brasil; a ideia de brasilianista voltada para aqueles que se dedicam às coisas do Brasil; e a hipótese de que a sensação de pertencimento do brasileiro a um território definido não existe.
Esses são pontos nodais que solapam qualquer observador de sua zona de conforto. Com esse, digamos, preparo, a reflexão teve sua potência elevada na exposição. Mesmo diante da magnitude e da beleza histórico-documental do acervo, a visita guiada à Brasiliana colocou aos olhos dos visitantes provocações e desconcertos em série para muito além da atitude contemplativa.
Nos mapas, com o entrelace de história e visão mítica, o interior do Brasil era um grande vazio preenchido com imagens de plantas, animais e índios. E todo o conjunto exposto como parte da fauna e da flora brasileiras em moldura de exotismo: Debret, Rugendas, Barat, Araújo Porto Alegre… A representação do africano e do indígena demonstrava a construção do olhar estrangeiro e a sua internalização pelo povo brasileiro como natural.
Na maioria das telas, o escravo é pintado numa angulação de baixo para cima, espécie de contra-plongée que, em princípio, o agiganta diante do olhar do observador; ocorre, porém, efeito de distorção que imprime dimensão grotesca à figura dos africanos. Tanto as representações dos indígenas quanto as dos africanos planificam as suas singularidades culturais e étnicas. Dos indígenas não se distinguem as fortes particularidades das tribos e, quanto aos africanos escravizados, as diferenças são representadas unicamente pelas funções exercidas como escravos na casa-grande.
Foi possível também constatar que Rugendas pinta várias telas com a temática da mineração de ouro, atividade que, pelas condições totalmente inadequadas a um ser humano, integrava um projeto de extermínio de escravos. Destaque também para um trabalho do famoso caricaturista do império, Angelo Agostini, que desenhou, à maneira de uma HQ contemporânea, uma das imagens mais fortes de denúncia da tortura à época do imperador, com a legenda “Cenas da escravidão patrocinadas pelo partido da ordem sob o glorioso e sábio reinado do Sr. D. Pedro II”. Trata-se do caso da escrava grávida chutada na barriga até a morte e que pode ter inspirado Machado de Assis no conto “Pai contra Mãe”, (em Relíquias da Casa Velha, 1906), publicado 18 anos após a abolição.
Vale ainda ressaltar cenas recorrentes nos quadros nas quais os escravos estão muito próximos aos senhores e às sinhás em atividades domésticas, como se estivessem perfeitamente integrados ao cotidiano da família. A proximidade física, diferentemente do que possa parecer, marca ainda mais a distância social, a fenda incomensurável entre escravo e senhor, entre europeus, africanos e indígenas.
Dos livros expostos, inclusive o livro Grandezas do Brasil, do século XVII, de Antonil, sabe-se que foram queimados, assim como a grande maioria das obras escritas. Ressalta-se que, até 1808, era proibido imprimir livros nas colônias.
Todo esse traçado aparece regido por e demonstra uma política do colonizador, não de descobrimento, mas de encobrimento de todo um país – ocultação que se perpetua no imaginário dos que nascem no Brasil. A visita guiada à Brasiliana, embora pequena diante da grandeza do acervo, nos ensinou a ler o que somos; nas palavras de João Cézar, é a metáfora da própria concepção de escrita da nacionalidade.
Assim terminamos um relato que não precisa ser um fim, mas que, em dimensões muito menores do que efetivamente foi o XI Encontro Internacional do Itaú Cultural, tentamos compartilhar. O pensar contemporâneo carece de conexões. E o público agradece.
NOTAS:
(1) BANDEIRA, Manuel. Nova póetica. In: ______. Belo belo. Poesia e prosa. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958.
(2) MELLO NETO, João Cabral de. Lição de poesia. In: ______. Poesia completa e prosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 2008.
(3) Fôlder do evento, verso; terceiro parágrafo.
(4) Disponível em: <https://www.itaucultural.org.br/espaco-olavo-setubal>.
por Maria Cristina Cardoso Ribas
MARIA CRISTINA CARDOSO RIBAS é Professora Associada em Letras, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na área de Literatura Brasileira, Literatura Comparada e Intermidialidades. Foi professora da PUC- Rio, nos Departamentos de Letras e Comunicação Social, até 2011. Seu livro Onze anos de correspondência: os machados de Assis (2008), publicado pela 7Letras e Puc-Rio, é o resultado de sete anos de pesquisa com fontes primárias na Academia Brasileira de Letras. Recentemente, foi publicado o seu estudo Re-reading Literature on Contemporary Cinema: Intermediality in Machado de Assis’s story ‘Father against Mother’ (1906) and Sergio Bianchi’s filme What is it worth? (2005), no livro (Re)writing without borders. Contemporary Intermedial Perpspectives in Literature ans the visual artes, pela Common Ground Research Networks.
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