Clarice Lispector — com suas idiossincrasias a pulsar feito uma tempestade — repetia uma máxima que, a seu modo, a definia como autora: “Gênero não me pega”. Sim, é possível definir sua obra como inclassificável, universal e indispensável a qualquer leitor minimamente exigente. Ao fugir de rótulos, Clarice parecia querer expandir suas palavras ao mundo, a um mundo particular que a circundava, mas que abria longos braços a tocar imensidões. Esta voz única a faz hoje a autora brasileira com maior presença internacional com centenas de traduções nas mais diversas línguas. E, ao contrário do que muitos pensam, tal fenômeno não se dá a partir da controversa biografia do norte-americano Benjamin Moser, lançada em 2009. Levantamento da professora Nádia Battella Gotlib, autora de Clarice: uma vida que se conta, apresentado durante o Conexões Itaú Cultural 2019, aponta um crescente número de traduções da obra de Lispector desde os anos 1940. “São mais de 300 traduções e ainda não acabei o levantamento”, disse Gotlib.
A partir desta constatação, poderíamos pintar um animador quadro da literatura brasileira pelo mundo. No entanto, o caso Clarice é uma exceção. Ponto central do Conexões, após dois dias de intensas discussões com especialistas de várias partes do mundo, chega-se facilmente à constatação de que autores brasileiros têm um espaço muito tímido em países em que a literatura ganha legitimidade mundial: Estados Unidos, França, Alemanha e Inglaterra. Neste “jogo de poder”, alguns autores clássicos até romperam a barreira da indiferença e tiveram destaque internacional. Um caso emblemático é o de Erico Verissimo, como apontou Carlos Minchillo, professor no Dartmouth College, nos Estados Unidos, e autor de Erico Verissimo, escritor do mundo: “Depois de início bem-sucedido, ele infelizmente está morto internacionalmente”, disse ao abordar a trajetória do escritor gaúcho nos Estados Unidos. Após a tradução de Caminhos cruzados, em 1943, para o inglês, Verissimo ainda teve outros seis livros traduzidos. No entanto, em breve espaço de tempo, caiu no ostracismo. “Faltou formar uma comunidade de leitores, faltou força crítica”, defendeu Minchillo.
É justamente a partir da universidade — espaço propício à criação de uma comunidade de leitores e ao fortalecimento da crítica — que se pode ampliar a circulação da literatura brasileira no exterior. O argentino Gonzalo Aguillar, professor na Universidade de Buenos Aires, defende que a boa recepção crítica de Grande sertão: veredas é responsável pela permanência de Guimarães Rosa em outras línguas. Atualmente, o clássico de Rosa está sendo traduzido novamente ao espanhol e ao inglês. “O crítico Ángel Rama teve um olhar muito profundo sobre a obra de Rosa”, explicou Aguillar ao abordar também como o autor mineiro “encarnava a fé na literatura, na fundação de um Brasil, de uma comunidade”.
Feito vaga-lumes numa tremenda escuridão, os esforços de professores e tradutores buscam algo bastante simples na teoria —mostrar a força da literatura brasileira ao leitor estrangeiro. “Não se percebe, não se sabe o que é a literatura brasileira”, garantiu Kenneth David Jackson, professor de literatura luso-brasileira na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. “O autor brasileiro precisa encontrar seu espaço no mundo”, disse com certo otimismo.
Se há entraves para algumas traduções — “A sintaxe de Guimarães Rosa é o diabo”, brincou a australiana Alison Entrekin, que trabalha em uma nova tradução para o inglês de Grande sertão: veredas —, a política cultural brasileira e a péssima imagem atual do país no exterior também colaboram para a escassez quase desértica de obras brasileiras nos Estados Unidos e Europa, notadamente os principais mercados literários. “Pra que estudar o português do Brasil?”, questionou Leonardo Tonus, professor da Universidade de Sorbonne, na França.
Há 10 anos editando somente autores brasileiros na França, Paula Anacaona explicou que é preciso destruir “o isolamento e a ignorância total sobre o Brasil”. Após publicar autores como Marcelino Freire, Raimundo Carrero e Djamila Ribeiro, Anacaona trabalha para que se conheça a cultura brasileira na Europa. “O Brasil não é o país do futuro. O Brasil é o país do presente”, disse com entusiasmo.
O mineiro Luiz Ruffato, cuja obra está traduzida em 12 países, é um crítico contumaz da falta de empenho do governo em levar a cultura e a literatura brasileiras a outros países: “O pouco que tínhamos foi destruído. E nada está sendo construído”. Neste sentido, praticamente todos os participantes do Conexões 2019 foram enfáticos na necessidade de se criar um instituto nos moldes do Goethe (Alemanha), Cervantes (Espanha) ou Camões (Portugal). “A literatura é parte de algo maior. Há esforços heroicos de alguns editores para tornar a literatura brasileira minimante conhecida. Mas o governo brasileiro não tem qualquer política de apoio às traduções”, afirmou Ruffato. A mesma crítica foi reiterada por Sárka Grauová, chefe do departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade Carolina de Praga, na República Tcheca: “A política cultural brasileira simplesmente desapareceu”.
A dificuldade de circulação de livros brasileiros não se restringe à Europa e aos Estados Unidos. O editor colombiano John Naranjo garantiu que há grandes dificuldades de inserção da autores brasileiros no mercado latino-americano. “Temos questões similares ao Brasil. Então, é preciso oferecer ao leitor ferramentas para interpretar a realidade, para questionar.” Ruffato, cuja obra é publicada por Naranjo na Colômbia, explicou que a dificuldade se deve ao fato de o Brasil ser o único da América Latina em que o espanhol não é a língua oficial. “O Brasil é muito plural e precisa explicar que lugar ocupa no mundo, de que maneira quer ser conhecido”, defendeu.
Ao final da edição 2019 do Conexões Itaú Cultural — cujo centro também abrigou discussões sobre estudos do cinema brasileiro no exterior e a preservação de línguas autóctones —, confirmou-se que há um claro retrocesso nos últimos anos em relação à publicação de autores brasileiros em outras línguas. Se Clarice ocupa um espaço privilegiado em diversas partes do mundo, outros autores canônicos têm uma circulação incipiente, praticamente inexistente. Já os contemporâneos, sem o apoio de uma política de traduções por parte do governo brasileiro, em geral, contam com ações pontuais de editores e com o imponderável, como defendeu Ruffato: “Quase sempre somos publicados por acaso. É o acaso lutando contra a falta de esforço institucional”.
Na luta contra ser refém do acaso e pela construção de uma política estatal consistente para traduções é que se mostram imprescindíveis discussões, críticas e sugestões como as apresentadas nos encontros do Conexões Itaú Cultural 2019.
por Rogério Pereira
Saiba mais:
CONFIRA VÍDEOS DOS DEBATES DO ENCONTRO INTERNACIONAL CONEXÕES ITAÚ CULTURAL 2019
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