Cultura no Pós Ditadura Brasileira em Livro de Rebecca Atencio
em 06/05/2014

Rebecca Atencio, professora de literatura luso-brasileira e estudos culturais da Tulane University (EUA) e mapeada do Conexões Itaú Cultural, acaba de lançar um livro sobre cultura e política no período pós ditadura militar brasileira. Memory’s Turn pertence à série Critical Human Rights, editada pela University of Wisconsin Press. Sua análise –  feita através de um profundo contato com a cultura e a sociedade brasileiras e de um vasto embasamento teórico – se centra em como as telenovelas, a literatura, o teatro e demais expressões do final dos anos 90 trabalharam a memória recente.

A pesquisadora nos concedeu uma entrevista onde detalha seu processo de aproximação com o tema e traz diversas referências a quem se interessar pelo assunto. Confira aqui:

 

Como surgiu seu interesse pela produção cultural na ditadura militar brasileira?

Em 1998, eu fui ao Brasil passar um ano na USP. Por acaso, alguém me deu um exemplar de Campeões do mundo, uma peça de Dias Gomes que dramatiza as realidades duras da vida durante a ditadura militar. Foi o primeiro livro em português que li inteiro. Fiquei muito impressionada pelo que li, mas notei que não se falava muito na ditadura militar no Brasil, pelo menos no final da década de 90. Os brasileiros que conhecia se mostravam um pouco perplexos quando eu fazia perguntas ou expressava meu interesse sobre o assunto. Achei estranho e queria entender melhor esse período e suas repercussões. Formei-me e resolvi fazer um doutoramento em literatura brasileira na University of Wisconsin-Madison. O tema do primeiro seminário que fiz na pós-graduação foi “Ditadura e repressão,” com o Professor Severino Albuquerque. A nossa primeira leitura foi o romance Em câmara lenta de Renato Tapajós, um livro que me marcou profundamente. Resolvi escrever a minha tese de doutoramento sobre esse livro e as memórias políticas de Fernando Gabeira e Flávio Tavares. Ao refletir sobre o surto de testemunhos de ex-guerrilheiros e de outros opositores ao regime na esteira da Lei da Anistia, comecei a ficar curiosa sobre a relação entre os dois fenômenos. Depois de terminar a tese, passei a pensar sobre a questão da interação entre políticas de Estado e produção artístico-cultural em termos muito mais amplos, e resolvi escrever um livro sobre o assunto que abrange o período entre 1975 e 2012.

Como foi feita a pesquisa? Você passou algum tempo no Brasil? Quais fontes procurou? Quais obras de arte/produtos culturais você analisa em seu livro?

Eu comecei a ler tudo o que podia sobre a ditadura militar e o processo de justiça de transição, e a procurar romances, contos, poemas, peças, filmes, novelas—enfim, qualquer obra de arte ou cultura que tratava do tema. Voltei várias vezes ao Brasil, visitando várias cidades e lugares. Eu estive em São Paulo em 2001, e fiquei sabendo de um memorial recém-inaugurado no prédio que tinha servido como a sede do Departmento de Ordem Política e Social (hoje conhecido como o Memorial da Resistência, mas naquela época ainda se chamava Memorial da Liberdade, nome que não fazia muito sentido dada a história desse lugar). Fui conhecer e uma mulher lá mencionou que em 1999 uma peça tinha sido encenada no espaço carcerário do prédio. Como ela não tinha mais detalhes para me dar, comecei a pesquisar. Não tive muita sorte até conhecer Amparo Araújo, do Movimento Tortura Nunca Mais em Recife. Ela me apresentou ao pessoal que tinha montado a peça em São Paulo, intitulada Lembrar é resistir, e eles foram muito generosos comigo. À medida que a minha linha de pesquisa se definia, amigos e colegas iam indicando outras obras relevantes. Leigh Payne, da Oxford University, sugeriu que eu trabalhasse com Anos rebeldes. Assisti e fiquei fascinada com a minissérie e o contexto no qual surgiu—ou seja, o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. Outra colega, Leila Lehnen, da University of New Mexico, indicou o romance Prova contrária de Fernando Bonassi, um texto extraordinário que lida com a Lei dos Desaparecidos de 1995 e que inspirou o filme Hoje de Tata Amaral (que, por sua vez, ficou associado com a Comissão Nacional da Verdade). O meu livro aborda todas estas obras a fim de propor uma teoria ou um modelo que explica a relação entre políticas de Estado e obras artísticas ou culturais que lidam com a memória da ditadura militar.

Como é a recepção do tema (ou de outros temas da cultura brasileira) em suas aulas/grupos de pesquisa na Tulane University?

Tulane é uma universidade onde o estudo do Brasil e da cultura brasileira sempre foi valorizado. Somos uma das poucas universidades nos Estados Unidos que oferece um doutorado em literatura brasileira. Tenho a sorte de ter dois colegas maravilhosos no meu departamento que também escreveram livros que tocam na questão da cultura e ditadura militar brasileiras: Idelber Avelar (autor de Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina, UFMG 2003) e Christopher Dunn (autor de Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira, UNESP 2008). Temos uma comunidade muito ativa de acadêmicos de várias disciplinas dedicados ao estudo do Brasil, inclusive vários cuja pesquisa enfoca a ditadura militar e seus legados, como o cientista político Tony Pereira (agora em King’s College, em Londres), a socióloga Martha Huggins (recém-aposentada), o professor de comunicação Mauro Porto e a historiadora da arte Megan Sullivan. Além disso, convido muitos especialistas brasileiros para dar palestras aqui sobre o tema. Por exemplo, em abril recebemos Kátia Felipini, coordenadora do Memorial da Resistência, e os meus alunos adoraram. Eles se mostram muito curiosos sobre a produção cultural brasileira em geral.

Quais são as suas principais áreas de pesquisa atualmente? Pretende desenvolver outro estudo que envolva a cultura e/ou a política brasileira?

 Continuo refletindo e escrevendo sobre a produção cultural brasileira e seu papel na busca pela verdade, memória e justiça no que toca às violações de direitos humanos da ditadura militar. Estamos vivendo um momento riquíssimo em termos tanto políticos (as comissões da verdade e os debates sobre a interpretação da Lei da Anistia são apenas dois exemplos), como culturais (o surto de novas obras lançadas em torno do aniversário dos 50 anos do golpe mês passado é prova disso). Tem muitos acadêmicos, dentro e fora do Brasil, fazendo trabalhos interessantíssimos, e eu também tenho muita coisa que quero escrever sobre o assunto ainda. Memory’s Turn contempla principalmente as duas primeiras décadas depois da transição democrática, durante as quais o Estado ignorou as demandas por memória, verdade e justiça para depois tomar medidas muito tímidas. A Comissão da Verdade está aí, claro, mas o livro termina mais ou menos com sua nomeação. Meu segundo livro vai dar seguimento ao primeiro, contando a história das comissões da verdade e também da Comissão da Anistia através da relação destas com a produção artístico-cultural. Aí entram romances recentes, filmes e também manifestações socio-políticas-artísticas, como os esculachos. Além desse novo projeto de livro, estou colaborando com a historiadora Nina Schneider, da Universität Konstanz, na Alemanha, no que eu espero que vai ver uma série de artigos teóricos sobre o papel da arte nas políticas da memória no Brasil pós-ditatorial.

 

 

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